domingo, 5 de julho de 2009

Salman Rushdie: Abril de 1999: MÚSICA ROCK

"Há pouco tempo perguntei a Vaclav Havel se admirava de facto Lou Reed. Ele replicou que era impossivel sobrestimar a importância da música rock para a resistência checa durante os anos de trevas que passaram entre a Primavera de Praga e o colapso do regime comunista. Eu começava a saborear a imagem mental dos líderes do underground checo acertando o passo ao ritmo de Velvet Underground, quando Havel acrescentou com o ar mais sério do mundo: "Porque é que achas que falámos de Revolução de Veludo?"(...) Tratava-se de uma brincadeira que escondia uma verdade mais literal- para os entusiastas da música popular de uma certa classe de idade as ideias de rock e de revolução são ideias indissoluvelmente ligadas. "Vocês dizem que querem uma revolução" dizia John Lennon, provocando-nos. "Bem como sabem/ todos nós queremos mudar o mundo". E a verdade é que com o passar dos anos comecei a pensar que essa associação era um pouco mais simples que simples romantismo juvenil. Por isso, descobrir que uma verdadeira revolução fora inspirada pelos rugidos de sedução do rock era realmente comovente. Fazia-me sentir uma espécie de validação.( Salman soube que Havel não estava a brincar, ele dissera exactamente a mesma coisa anos mais tarde a Lou Reed).

Hoje que já ninguém parte guitarras opu protesta sobre coisa que se veja, hoje que o rock entrou na meia idade e se organizou em associações comerciais, hoje que os mais jovens ouvem rap, trance e hip-hop, e Bob Dylan e Aretha Franklin são convidados a cantar nas investiduras presidenciais, esquecem-se com facilidade as origens oposicionais da forma, a sua carga anti-establishment de outrora. Todavia, o espirito de revolta, rude e seguro de si do rock talvez seja uma das razões que fez com que o seu som estranho, simples e imparável tenha conquistado o mundo à cerca de meio século, atravessando todas as fronteiras e todas as barreiras da língua e da cultura, acabando por se tornar o terceiro fenómeno global da história, a seguir ás guerras mundiais. Era o som da libertação e falava, por isso, aos jovens espiritos livres de toda a parte- o que, como é evidente, as nossas mães não apreciavam por aí além.

(...)

O que parecia ser e sentíamos como liberdade parecia ao mundo adulto qualquer coisa como mau comportamento, e em certo sentido, os dois lados estavam certos. (...) A liberdade, essa antiga anarquia que bate o pé, é um valor mais alto e mais bravio que o bom comportamento,e , apesar de todo o seu espirito de revolta hirsuta da madrugada, representa um risco muito menor de desembocar em devastações graves que a obediência cega e o respeito hirto perante as convenções. É preferivel a destruição de umas tantas suites de hotel à destruição do mundo.

(...) Existe em nós qualquer coisa que se limita a desejar seguir a multidão. (...)Mas nós continuamos a querer ser conduzidos, a seguir senhores da guerra mesquinhos e ayatollahs assassinos e dirigentes nacionalistas brutais, ou a chupar no dedo escutando docilmente os Estados-infantário que sabem melhor do que nós o que nos convém. É por isso que os tiranos abundam, e que até mesmo aqueles de entre nós que fazem parte de países idealmente livres deixaram de ser, na sua maioria, espíritos rock n' roll.

A música de liberdade assusta as pessoas e desencadeia toda a espécie de mecanismos de defesa conservadores. (...)

Supunha-se que a queda dos regimes comunistas e a destruição da Cortina de Ferro e do Muro trariam uma nova era de liberdade. Em vez disso, o mundo que veio depois da guerra fria, ainda informe e cheio de possibilidades, fez com que muitos de nós ficássemos cheios de medo. Refugiámo-nos ao abrigo de cortinas de ferro mais pequenas, construímos paliçadas um pouco menos altas, fechámo-nos em definições mais estreitas, cada vez mais fanáticas, de nós próprios- definições religiosas, regionais, étnicas- e começámos a preparar-nos para a guerra.

Hoje, enquanto o ribombar de uma dessas guerras submerge a doçura do canto da melhor parte de nós próprios, descubro em mim a nostalgia do velho espírito de independência e de idealismo que outrora, propagado pela música, nos ajudou a acabar com outra guerra (no Vietname). Mas hoje a única música que ouvimos no ar é a de uma marcha fúnebre."

Salman Rushdie: Abril de 1999: MÚSICA ROCK

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